A Morte do incrédulo
Depois que o idoso lutou com uma longa enfermidade e
suportou o peso da dor, achando que agora pode esperar algum sossego, vem a
morte, o carrasco da natureza, a maldição de Deus, o fornecedor do inferno.
Olhando para o velho com cara feia e sombria, sem dó da sua idade, nem levando
em conta as suas dores, suportadas por muito tempo, não se deixará comprar por
prata ou ouro para se deter. Nada disso! Ele não aceitará nada para poupar a
sua vida, exigindo pele por pele (Jó 1) e tudo o que o idoso tem; e então
espanca todas as partes principais do seu corpo e prende o pobre homem para
fazê-lo comparecer diante do terrível Juiz. E, como que achando que o velho não
se dispõe a ir com ele depressa o bastante, ó Senhor, quantos dardos de
calamidades ele atira no idoso: pontadas, dores, cãibras, febres, obstruções,
resfriado, catarro, cólica, pedra (cálculo), gases, etc.
Oh, que visão cadavérica, vê-lo ali em seu leito, quando a
morte lhe dá o golpe final! Que frígido suor escorre por todo o seu corpo — que
tremor se apossa de todos os seus membros! A cabeça metralha, o rosto
empalidece, o nariz escurece, o maxilar inferior descai, os nervos oculares
estão prestes a se romper e se dividir. Agora a pobre e miserável alma percebe
e sente que o corpo terreno começa a morrer. Parece o final do mundo, quando
ocorrerá a dissolução da estrutura universal. O sol se converterá em trevas, a
luz em sangue, as estrelas cairão do céu, o espaço estará cheio de tempestades
e de faiscantes meteoros, a terra tremerá, o mar urrará estrondosamente e os
corações dos homens falharão de medo, esperando o fim de tão lastimosos
começos. Assim também, ao se aproximar a dissolução do homem, que é o pequeno mundo,
os seus olhos, que são como o sol e a lua, perdem a sua luz, e ele não vê nada
senão a culpabilidade sangrenta do pecado. O restante dos sentidos, como
estrelas menores, vacilam e caem; a sua mente, a sua razão e a sua memória,
como os poderes celestes da sua alma, sofrem abalos causados por temporais de
desespero e violentas faíscas do fogo do inferno; o seu corpo terreno se põe a
sacudir e a tremer, e os humores, como um mar encapelado, roncam e ribombam na sua
garganta, ainda à espera do funesto fim destes terríveis males iniciais.
Enquanto ele é assim intimado a comparecer às grandes
sessões do julgamento divino, eis que outra sessão de julgamento e entrega à
prisão é dirigida dentro dele. Nesse tribunal a razão se assenta, desempenhando
a função de juiz, o diabo apresenta uma lista de acusações tão comprida quanto
aquele livro ou rolo de Zacarias (Zc 5.2; Ez 1.9,10). Nessa lista são alegadas
todas as más ações que você cometeu e todas as boas ações que você não fez, e
todos os juízos e maldições devidos a todo pecado. Sua própria consciência vai
acusá-lo, sua memória vai lhe dar amarga prova, e a morte está no tribunal,
pronta, como um fiel executor, para despachá-lo.
Se você mesmo vai se condenar dessa forma, como escapará da
justa condenação de Deus, que conhece todos os seus delitos melhor do que você
(ljo 3.20)? Bem que você gostaria de tirar da sua mente a lembrança das suas
más ações que o inquietam; porém, elas fluem mais rapidamente para dentro da
sua memória, e não serão postas fora, mas sim, bradarão para você: “Nós somos
as suas obras, e vamos seguir você!” E enquanto a sua alma está assim por
dentro, sem paz e em desordem, os seus filhos, a sua mulher e os seus amigos o
amolam, querendo que você ponha em ordem os seus bens. Alguns gritam, alguns
suplicam, alguns clamam por piedade, alguns com elogios; todos, como moscas
varejeiras, ajudam a tornar as suas tristezas mais tristes (Lc 12.20).
Agora os demônios, que vêm do inferno para buscar a sua
alma, começam a lhe aparecer; e ficam esperando para pegá-la e levá-la embora,
tão logo ela deixe o corpo. A alma gostaria de permanecer no corpo, mas sente
que ele começa a morrer gradativamente, e que está prestes a desabar sobre a
sua cabeça como uma casa em ruínas. Ela está com medo de sair, por causa
daqueles cães de caça do inferno que a esperam. Oh, ela, que gastara tantos
dias e tantas noites em passatempos vãos e ociosos, agora daria o mundo inteiro
se fosse seu, pela demora de mais uma hora, para que tivesse tempo de se
arrepender e ser reconciliado com Deus! Contudo, isso não pode acontecer,
porque o seu corpo, que se juntava a ela em suas ações pecaminosas, agora está
inteiramente inepto para se juntar a ela no exercício do arrependimento; e é
preciso que o arrependimento seja do homem todo.
Agora ela vê que todos os seus prazeres se foram como se
nunca tivessem existido e que agora só lhe restam tormentos que nunca terão
fim. Quem pode expressar suficientemente o seu remorso pelos seus pecados, a
sua angústia pela presente miséria e o seu terror pelos seus tormentos futuros?
Nesta extremidade ela procura socorro em toda parte e se vê
sem socorro o tempo todo. Por isso, em sua maior miséria, desejosa de ouvir a
menor palavra de consolo, dirige a seus olhos estas palavras ou semelhantes: “O
olhos, que no passado eram rápidos para enxergar, vocês não podem achar nenhum
consolo, alguma coisa que me ajude a escapar deste perigo terrível?” Todavia,
os nervos óticos se romperam, e os olhos não conseguem ver a vela acesa diante
deles, e não conseguem nem discernir se é dia ou noite.
A alma, não encontrando nada que a conforte nos olhos, diz
aos ouvidos: “O ouvidos, que gostavam de se recrear ouvindo discursos novos e
agradáveis e a doce harmonia das músicas, vocês podem ouvir alguma notícia,
algumas boas novas de consolo para mim, por menor que seja?” No entanto, ou os
ouvidos estão tão surdos que nada podem ouvir, ou o sentido da audição ficou
tão fraco que não suporta ouvir os seus amigos mais queridos falarem. E por que
esses ouvidos deveriam ouvir notícias alegres na morte, sendo que nunca pararam
para ouvir as alegres novas do evangelho nesta vida? O ouvido não pode
ministrar nenhum conforto.
Então ela fala da sua aflição à língua: “O língua, você, que
costumava se gabar com os mais valentes, onde estão agora as suas palavras
grandiosas e atrevidas? Agora, em minha maior necessidade, você não pode dizer
nada em minha defesa? Não pode amedrontar estes inimigos com palavras
ameaçadoras, nem lhes fazer súplicas com belos discursos?” Ah! Já faz dois dias
que a língua ficou sem fala. Em sua maior extremidade, ela não pode pedir um
pouco de bebida, nem contar a um amigo o seu desejo de que ele tire com o dedo
o muco do nariz que se acumula e está prestes a entupi-lo.
Não achando ali nenhuma esperança de ajuda, ela diz aos pés:
“Onde estão vocês, ó pés, que houve tempo em que eram tão ágeis para correr?
Não podem me levar para qualquer parte distante deste lugar perigoso e
tenebroso?” Entretanto, os pés estão completamente amortecidos. Se ninguém os
mover, eles não poderão se mover.
Então a alma dirige as suas palavras às suas mãos: “O mãos,
que tantas vezes foram aprovadas para uso do homem, na paz e na guerra, e com
as quais me defendi muitas vezes e feri inimigos, nunca tive mais necessidade
de vocês do que agora. A morte me olha sombriamente na cara e me mata —
demônios do inferno esperam em volta da minha cama para me devorar: ajudem-me
agora, ou perecerei para sempre”. Que lástima! As mãos estão tão fracas e tremem
tanto que não podem fazer chegar à boca uma colherada de líquido para restaurar
a natureza extenuada.
A alma aflita se vê desolada dessa forma e completamente
destituída de amigos, ajuda e consolo. Sabendo que dentro de uma hora terá que
estar no meio dos sofrimentos eternos, ela se retira para o coração (que, de
todos os membros, é primum vivens, e ultimum moriens — o primeiro que vive e o
último que morre). Faz então esta dolente lamentação consigo mesma: “Oh, que
miserável patife eu sou! Como me envolvem as angústias da morte! Como me
apavoram as torrentes de Belial (2Sm 22.5)! Na verdade, os laços da primeira e
da segunda morte logo me apanham de vez. Oh, quão inesperadamente a morte se
insinuou de forma imperceptível, grau após grau, assim como o sol, que os olhos
não percebem que se move, apesar de se mover velozmente! Como a morte
descarrega sobre mim o seu rancor, sem piedade! O Deus de misericórdia me
abandonou completamente; e o diabo, que não conhece misericórdia alguma, está à
espera para me levar. Quantas vezes eu fui advertido deste doloroso dia pelos
fiéis pregadores da Palavra de Deus, e eu só zombava disso! Que proveito eu
tenho agora de todo o meu orgulho, de uma bela casa, de roupas brilhantes? Em
que deu o gostoso sabor de todos os meus deliciosos manjares? Todos os bens
terrenos que juntei com tanto zelo, eu agora daria por uma boa consciência, que
tão relaxadamente negligenciei! E que alegria sobra agora de todos os meus
gozos carnais de antes, nos quais eu punha o meu maior prazer? Aqueles tolos
gozos eram apenas sonhos enganosos, e agora estão no passado, como sombras que
se desvanecem. Contudo, só pensar nas dores eternas que terei que suportar por
aqueles curtos prazeres me dói como o inferno antes de eu entrar nele. Todavia,
com justiça, confesso, tenho sido tratado como mereço, pois quantas bênçãos
recebi! Fui criado à imagem de Deus, com uma alma racional, capaz de julgar por
mim mesmo o meu estado.
A misericórdia me foi
oferecida tantas vezes e, sendo instado a recebê-la, eu negligenciei a graça de
Deus, preferindo os prazeres do pecado ao cuidado religioso de agradar a Deus.
Vivi licenciosamente o meu curto tempo, sem considerar as contas que eu teria
de prestar no fim definitivo. E agora, juntando todos os prazeres da minha
vida, eles não se equiparam nem à mínima parte das dores que agora sofro: as
minhas alegrias foram apenas momentâneas e elas se foram antes de eu
desfrutá-las mais um pouco; as minhas misérias são eternas e jamais terão fim.
Oh, quanto tempo consumi com as cartas, os dados, o jogo e outras práticas vis!
Se tão-somente eu tivesse passado esse tempo lendo as Escrituras, ouvindo
sermões, recebendo a comunhão, chorando por meus pecados, jejuando, vigiando,
orando e preparando a minha alma, para agora poder partir firmado na segura
esperança da salvação eterna! Oh, se agora eu pudesse recomeçar a minha vida!
Como eu desprezaria o mundo e as suas vaidades! Quão religiosamente e com que
pureza eu levaria a minha vida! Como eu frequentaria a igreja e santificaria o
dia do Senhor! Se satanás me oferecesse todos os tesouros, prazeres e promoções
deste mundo, ele nunca me instigaria a esquecer os terrores desta terrível hora
final. O corrupta carcaça, porém, ó podridão repugnante! Como o diabo nos
ilude! E como servimos e enganamos uns aos outros, e atraímos veloz condenação
sobre nós dois! Agora o meu caso é mais miserável do que o do animal que perece
num fosso, pois terei de responder diante do trono de juízo do justo Juiz do
céu e da terra, onde não tenho nada para dizer em meu favor. E esses iníquos,
que têm o segredo de todos os meus delitos, vão me acusar, e eu não posso me
desculpar; o meu próprio coração já me condena. Portanto, só tenho que ser
condenado diante do tribunal divino, e, em consequência, serei levado por esses
demônios infernais para aquela horrível prisão de tormentos e de trevas
completas, onde nunca mais verei luz, aquela primeira coisa supinamente
excelente que Deus criou. Eu, que me gloriava anteriormente em ser um
libertino, agora estou preso nas garras de satanás, como a trêmula perdiz presa
entre as apertantes unhas do voraz falcão. Onde vou me alojar esta noite — e
quem serão os meus companheiros? Que horror, só em pensar! Que aflição, só
considerar isso! Maldito o dia em que nasci, e não haja bênção para o dia em
que a minha mãe me trouxe à luz! Maldito o homem que anunciou ao meu pai:
‘Nasceu-lhe uma criança’, e o animou; maldito esse homem, porque não me matou!
Oh, se minha mãe fosse o meu túmulo, ou seu ventre uma concepção perpétua! Como
foi que eu saí do ventre materno para suportar estas angústias infernais e os
meus dias viessem acabar numa vergonha eterna? Maldito o dia em que fui unida
inicialmente a um corpo tão vil! Oh, se eu tão-somente recebesse o grande favor
de nunca mais ver você! Nossa despedida é amarga e dolorosa, mas o nosso
reencontro, para recebermos naquele pavoroso dia a plenitude da merecida
vingança contra nós, será muito mais terrível e intolerável. No entanto, como
pretendo eu, com tão tardia lamentação, procurar prolongar o tempo? Minha
última hora chegou, ouço rebentarem as cordas do coração: esta suja casa de
barro cai em cima da minha cabeça; aqui não há nem esperança, nem socorro, nem
lugar de mais permanente habitação. E devo partir, suja carcaça? Oh, carcaça
imunda! Com adeus, adeus, eu a deixo”.
E assim, toda trêmula, a alma sai e imediatamente é agarrada
pelos demônios infernais que a levam com a violência de caudalosas torrentes
para dentro do lago sem fundo que arde com fogo e enxofre. Ali ela é mantida
prisioneira em tormentos,1 até o juízo geral do grande dia (Ap 21.8; Jd 6; IPe
3.19).
Depois, a repugnante carcaça é lançada no túmulo. Ato no
qual, na maior parte, os mortos enterram os mortos, isto é, os que estão mortos
no pecado enterram os que estão mortos para o pecado. E assim o mundano sem
Deus e não regenerado, que fez da terra o seu paraíso, do seu ventre o seu
deus, da sua luxúria a sua lei, assim como em sua vida semeou vaidade, assim
também, agora morto, colhe miséria. Em sua prosperidade negligenciou servir a
Deus; em sua adversidade Deus Se recusa a salvá-lo. E o diabo, a quem ele por
muito tempo serviu, agora finalmente lhe paga o seu salário. Detestável foi a
sua vida, condenável é a sua morte. O diabo tem a sua alma, o túmulo tem a sua
carcaça, e nesse poço de corrupção, cova da morte, calabouço de angústia,
deixemos o miserável pecador a se putrefazer com a boca cheia de terra, o seu
ventre cheio de vermes e a sua carcaça exalando mau cheiro. Ali ele espera uma
ressurreição amedrontadora, quando o corpo será reunido à alma para que, assim
como pecaram juntos, sejam atormentados juntos eternamente.